quinta-feira, 26 de julho de 2012

O Mercado Ficou Marcado

'Ao meio dia e meia, vamos lá contigo'.

É a Praça da Madeira. É mais perto de casa e mais segura segundo diz a São: ‘À outra é preciso irmos de táxi porque é muito longe e lá há muitos bandidos.’
A sério? Ainda insisti um pouco, pois coragem não me falta e medo tenho pouco. ‘Não, a esse é melhor não. Há muitos bandidos’, reafirma a Luísa, e nem tinha ouvido a nossa conversa. ‘Estão sempre à procura de quem tenha dinheiro.’ E assim me convenceram. Elas lá sabem. Também não gosto de correr riscos desnecessários. Mas fiquei francamente curiosa com o Mercado do Katintom na Praça Nova, porque é mesmo muito grande segundo elas dizem.
A São e a Luísa levaram-me pelos becos do musseque, pelas ruas de pó, pelas crianças lindas com brinquedos improvisados de coisas velhas que as divertem muito a julgar pelos seus risos e corridas às gargalhadas.
Observava tudo a cada passo, a cada viragem de esquina. É simplesmente uma aldeia. Passamos pelas pessoas e dizemos ‘Bom dia!’ e ouvimos um cordial ‘Bom dia!’ sorridente e curioso porque nunca nos viram por ali.
As pessoas que passam atrapalhadas pelas ruas estreitas, entre muros, aguardam a sua vez de passar. O senhor do carrinho de mão implica, ao cruzar-se, com o menino da mala de escola às costas que vem em sentido contrário por vir tão devagar que ‘ele não tem o dia todo para esperar que ele passe’. Afinal de contas ele foi cordial com o menino e é assim que ele lhe agradece.
O rapaz nem diz nada, talvez a anuir. Não há muito a dizer. Há que aprender. Porque o tempo passa e não há tempo a perder. E nesta cidade há muito para fazer.
Imensas ruas, imenso pó. Os cães enrolados, cheios de moscas, sacodem-se às vezes. De resto já se habituaram a dormir assim, entre os passeios de cimento que por vezes surgem nas laterais da estrada. O que mais custa é andar depressa em terreno arenoso. Elas já se movimentam rápido, estão em casa, a mim cansa-me um pouco e ando um pouco mais devagar mas sem me atrapalhar vou saltando as poças nas ruas. De vez em quando passamos por troços de água de esgotos que atravessam as ruas onde passamos. Cuidadosa vou tentando colocar os pés em terreno seco, o que se torna por vezes algo habilidoso. Mas arrependo-me quando observo que estão todos a olhar para mim a tentar compreender a minha preocupação. Olho para os meus pés e acho ridículo ter dado cem euros por uns Fly London que caminham em Luanda.
Era a única coisa cara que levava, com a vantagem de eles não imaginarem o preço. São os meus sapatos mais parecidos a um tractor. Obediente no resto fui como mandaram, de cabelos desgrenhados e t-shirt fora das calças de ganga rotas, que eles não sabem que em Portugal está na moda.
No bolso direito o passaporte que todos insistiram que tinha de levar. No esquerdo um telefone cor de laranja da Unitel básico e leve. Os números e nomes para quem devo ligar caso ocorra alguma coisa. E mil seiscentos e quinze kwansas para se eu quiser comprar alguma coisa, ou para se alguém quiser me roubar.
Atravessar a estrada foi a maior aventura do mercado. Eu atravessei de mão dada com a São e francamente não tenho vergonha porque quem sabe como se conduz em Luanda reconhece que foi o momento mais arriscado do meu percurso.
Chegámos por fim à Praça do Madeira, que à hora de almoço estava apinhada de gente. Umas compravam, outras vendiam e eu, a única branca à excepção de duas meninas albinas, passeava apenas, curiosa de tudo. Absorvia tudo à minha volta, por pouco até um telhado de zinco que vinha na minha direcção e em que o local diz a gozo que depois fica vermelho.
Fingi que não ouvi. Até porque afinal ele nem sabe que fica é negro. E que, se quisermos, somos todos da mesma cor.
Vende-se tudo desde materiais de construção, roupas, bebidas e comidas. As carnes e os peixes carregados de moscas, colocados tudo em cima de bancadas de madeira. Os vendedores já têm os sacos vazios prontos para a venda à nossa passagem. Apontam para nós a oferecerem-nos os seus produtos. É só escolhermos.
Até a roupa de bebé está devidamente pendurada para vermos melhor os tamanhos do que procuramos.
Alguidares, materiais de construção, utilidades para o lar.
Frutas várias colocadas por tipo bananas, abacates, limões, ananases tudo devidamente equilibrado num efeito bonito num alguidar de cor diferente. Por exemplo a cor das laranjas a contrastar com o azul claro do alguidar.
Não mostrei interesse por nada. Na verdade estava interessada em tudo. Mas assim despistei os insistentes vendedores que tentam convencer que vendem o melhor produto ao melhor preço. Puros vendedores.
A determinada altura ouço apenas a São murmurar à Luísa e de repente ambas formam-se numa barreira protectora. Recordo a mão da São que me empurra para a frente dela e para as costas da Luísa. Uma à minha frente e outra atrás de mim. Não me apercebi do perigo mas percebi o carinho do momento em que me protegem literalmente apercebidas dos potenciais problemas. Não tentei averiguar mais nada nem no momento nem depois disso. Fica apenas a confirmação de que há gente boa, em todo o lugar onde há gente má.
A luz do dia, os cheiros, os sons das buzinas misturadas com os risos das crianças, é o que prefiro guardar em mim, junto com a descontraída ingenuidade minha e delas.

1 comentário:

  1. E não chegaste a conhecer o mercado do Roque Santeiro, agora desactivado, que foi o maior mercado a céu aberto de África.

    "Se não tem no Roque, é porque ainda não foi inventado." dizia Pepetela

    ResponderEliminar

Obrigada por não ter vergonha em se despir publicamente!