-“Tens filhos Paula?”
-“Não. Biológicos, não. Eu sou
estéril. Mas adoptei três bebés. O mais velho tem agora 14 anos. Tem um problema de fala, vive com o pai em Braga, e está a ser tratado.
A mais nova é ainda bebé, tem 2 anos. E a mais nova tem 6 anos, é a Deusa. É uma menina muito inteligente. É filha de uma mulher
maluca. A mãe teve de ser acorrentada, nos últimos dias da gravidez, para dar à
luz e não lhe fazer nada de mal. Mas agora não vivem comigo.
Vivem com a minha irmã, porque eu saio muito cedo e regresso a casa tarde do trabalho. Eu vivo sozinha.”
Quando anoitece, Paula prefere ir
até casa sem companhia do que com brancos – “torna-se mais perigoso para vocês
regressarem sem a companhia de um local”.
A Paula vive num musseque, por
isso não tem as filhas com ela. Está divorciada de modo que tem de trabalhar e
chega a casa já de noite.
“Quando chegar a casa isto já
está descongelado” desabafa enquanto observa os filetes de peixe que seriam
para o almoço de domingo, e não havia luz na zona. Aqui falta a luz de rede com
muita frequência e a maioria das pessoas não tem gerador, luxo dos mais ricos.
Factor que acaba por complicar adicionalmente vidas já tão difíceis nem mesmo
antecipando as refeições dos próximos dias.
O Mário que entretanto se
aproxima entra na conversa e questiona a sua origem:
- “Donde és tu, Paula?”
- “Eu nasci em Humpata. Fui circuncisada.” Ouvi esta atrocidade e arrepiei-me.
Perdi a capacidade de descrever
essa mutilação, forma de eliminar o prazer sexual feminino, grave ofensa contra
os direitos humanos, desde que me forcei a ver até ao fim uma reportagem relacionada,
na minha adolescência. Felizmente a Paula sobreviveu mas muitas meninas morrem
de imediato do sangramento ou de infecções relacionadas, e acarreta riscos de
saúde permanente para as que sobrevivem.
Faltavam-me as palavras.
É o Mário quem questiona que
aquilo não se faz há anos. Fazem-se apenas rituais religiosos simbólicos. Mas a
Paula teve o azar de nascer em 1968, num ano em que ainda se cumpriam esses
rituais na província de Huíla. Ficamos sem saber se a esterilidade da Paula,
não será causa/ efeito de tal mutilação. Mas fica provada a inutilidade de tal
ritual que, entre muitas razões, alega não se poder conceber sem esta ignorante
prática.
Ficámos a observá-la de queixo
caído, ombros baixos, pensativos, voz triste, condoídos.
Como podem pessoas serem capazes
de práticas abomináveis que nem os animais cometem?
Como pode uma pessoa sorrir assim,
depois de tantas maldades que lhe foram infligidas?
Há perguntas erradas que nos
fazem correr o risco de aumentar a admiração por algumas pessoas e a raiva pela
estupidez humana, num mundo com tanto potencial e porém, tão longe de ser
perfeito.
O poder da tradição, do acreditar sem saber porquê.
ResponderEliminarA televisão informa, mas sem acutilância da realidade.
Foi instantâneo, sentes imediatamente que algo mudou dentro de ti, que o teu olhar está diferente. Sabes que sempre que sempre que ouvires falar deste tema te vais lembrar daquele instante, do olhar da Paula, da velocidade com que ele expeliu aquela frase, como se as palavras a estivessem a incomodar por dentro.
O improvável sorriso da Paula, resiliente, redentor, é uma lição de vida.