Os risos
das crianças pequenas nas brincadeiras de rua, o choro do bebe
recém-nascido da vizinha, que a avó consola num longo embalo cantado, sentada
numa cadeira de jardim, as manas pequenas que se lavam uma à outra num
alguidar, enquanto os pássaros, numa tremenda gritaria e voo indeciso, escolhem
o seu abrigo para esta noite, e os aparecimentos surpresa da Fiéri recordam-me
aquela tarde dos meus cinco anos, em que fui com a avó Maria tirar fotografias
à Estefânia, a casa do Filipe, o padrinho do paizinho, José Fernando.
No pátio, ouviam-se os risos gargalhados dos meninos africanos que corriam, a fugirem uns dos outros, brincando descalços, enquanto as suas mães moíam a farinha de mandioca no pilão, entre cânticos, gritados à vez por cada uma delas, algumas com os bebes às costas, e enquanto a minha avó Maria lavava a loiça do almoço na cozinha, eu só pensava em brincar.
Queriam que passasse a tarde a brincar na salinha de estar, com o sofá
grande onde aguardavam que eu adormecesse, sem fazer milhares de perguntas,
como costumava fazer diariamente.
O cadeirão em pele castanha, ao lado do candeeiro de pé alto com um abajur de
cor bege, às pregas, com farripas penduradas, e uma enorme estante carregada de
livros, outra com vários jogos de mesa: damas, cartas, dominó e xadrez iguais
aos do meu avozinho, ambas com portas de vidro fechadas a chaves douradas. Pendurado
na parede, um quadro grande com dois senhores a jogarem às cartas. No canto, junto
à janela, uma mesa redonda com uma toalha rosa-velho a segurar apenas um
candeeiro de porcelana. No tecto, o candeeiro de cristais, expandia a luz do
Sol projectada pela janela, e invadia a sala de milhares de cores lindas, muito
mais do que o estojo de canetas que o meu pai me trouxera da Suíça, que se espelhavam
em todo o lado, nos vidros, nas paredes, fazendo efeitos mágicos naquele espaço
e na minha memória.
Os meus brinquedos espalhados no chão, eu sentada num felpudo tapete em forma de animal, o cobertor estendido no sofá à minha espera e eu sem sono, ouvia a minha avó desabafar com a madrinha que eu não dormia a sesta e que não sabia o que me fazer. “Mas ela dorme de noite, não dorme?” E a resposta positiva da avó descansou a madrinha que respondeu “Então não te preocupes. Deixa-a brincar. Há crianças que têm mais energia que outras.”
Eu queria brincar, mas não sozinha.
Até que um dos gatos do pátio apareceu na porta da sala e esfregando-se
languido na ombreira, miou-me num quase convite para o seguir.
Lembro-me tão bem de ouvir os gritos das crianças desde a cozinha e de a
medo me debruçar pelo parapeito para as espiar. Lembro-me tão bem de ter medo
de uma cultura bem diferente, e para mim ainda desconhecida. Enquanto o gato
descia a África, lembro-me de ter ficado ali parada, um bom tempo a observá-los,
as diferenças, os braços de cor mais escura que os meus, eles vestindo apenas
calções e elas uns leves vestidos, como eu trazia, corriam descalços como se
estivessem na praia.
Lembro-me tão bem de, no momento da decisão, descalçar os sapatos, de encher
o peito de coragem em vez de ar e, de um a um, atrever-me a descer cada degrau
daquela imensa escadaria, e enquanto os gritos das mães e dos meninos ecoavam
por todo o pátio, o meu coração vibrava.
Lembro-me que valeu a pena. Fui aceite nas brincadeiras e mesmo sem terem
nada de especial para brincar, lembro-me que foi muito divertido.
Foi a primeira vez que desci a África.
Eu sinto-me aqui agora como se já cá tivesse estado dessa primeira vez.
Há sempre dois lados da questão, o que pensamos quando alguém diferente está entre nós, e quando nós somos diferentes de quem nos rodeia.
ResponderEliminarSaber viver com a diferença implica conhecer os dois lados da barreira.
E sim, disse a diferença, porque essa coisa de sermos todos iguais não é verdade. Somos diferentes, e essa é a atracção da diversidade.