É a Praça da Madeira. É mais perto de casa e
mais segura segundo diz a São: ‘À outra é preciso irmos de táxi porque é muito
longe e lá há muitos bandidos.’
A sério? Ainda insisti um pouco, pois coragem
não me falta e medo tenho pouco. ‘Não, a esse é melhor não. Há muitos
bandidos’, reafirma a Luísa, e nem tinha ouvido a nossa conversa. ‘Estão sempre
à procura de quem tenha dinheiro.’ E assim me convenceram. Elas lá sabem.
Também não gosto de correr riscos desnecessários. Mas fiquei francamente
curiosa com o Mercado do Katintom na Praça Nova, porque é mesmo muito grande
segundo elas dizem.
A São e a Luísa levaram-me pelos becos do
musseque, pelas ruas de pó, pelas crianças lindas com brinquedos improvisados
de coisas velhas que as divertem muito a julgar pelos seus risos e corridas às gargalhadas.
Observava tudo a cada passo, a cada viragem de
esquina. É simplesmente uma aldeia. Passamos pelas pessoas e dizemos ‘Bom dia!’
e ouvimos um cordial ‘Bom dia!’ sorridente e curioso porque nunca nos viram por
ali.
As pessoas que passam atrapalhadas pelas ruas
estreitas, entre muros, aguardam a sua vez de passar. O senhor do carrinho de
mão implica, ao cruzar-se, com o menino da mala de escola às costas que vem em
sentido contrário por vir tão devagar que ‘ele não tem o dia todo para esperar
que ele passe’. Afinal de contas ele foi cordial com o menino e é assim que ele
lhe agradece.
O rapaz nem diz nada, talvez a anuir. Não há
muito a dizer. Há que aprender. Porque o tempo passa e não há tempo a perder. E
nesta cidade há muito para fazer.
Imensas ruas, imenso pó. Os cães enrolados, cheios
de moscas, sacodem-se às vezes. De resto já se habituaram a dormir assim, entre
os passeios de cimento que por vezes surgem nas laterais da estrada. O que mais
custa é andar depressa em terreno arenoso. Elas já se movimentam rápido, estão em
casa, a mim cansa-me um pouco e ando um pouco mais devagar mas sem me
atrapalhar vou saltando as poças nas ruas. De vez em quando passamos por troços
de água de esgotos que atravessam as ruas onde passamos. Cuidadosa vou tentando
colocar os pés em terreno seco, o que se torna por vezes algo habilidoso. Mas
arrependo-me quando observo que estão todos a olhar para mim a tentar
compreender a minha preocupação. Olho para os meus pés e acho ridículo ter dado
cem euros por uns Fly London que caminham em Luanda.
Era a única coisa cara que levava, com a
vantagem de eles não imaginarem o preço. São os meus sapatos mais parecidos a
um tractor. Obediente no resto fui como mandaram, de cabelos desgrenhados e t-shirt
fora das calças de ganga rotas, que eles não sabem que em Portugal está na
moda.
No bolso direito o passaporte que todos
insistiram que tinha de levar. No esquerdo um telefone cor de laranja da Unitel
básico e leve. Os números e nomes para quem devo ligar caso ocorra alguma
coisa. E mil seiscentos e quinze kwansas para se eu quiser comprar alguma
coisa, ou para se alguém quiser me roubar.
Atravessar a estrada foi a maior aventura do
mercado. Eu atravessei de mão dada com a São e francamente não tenho vergonha
porque quem sabe como se conduz em Luanda reconhece que foi o momento mais
arriscado do meu percurso.
Chegámos por fim à Praça do Madeira, que à
hora de almoço estava apinhada de gente. Umas compravam, outras vendiam e eu, a
única branca à excepção de duas meninas albinas, passeava apenas, curiosa de
tudo. Absorvia tudo à minha volta, por pouco até um telhado de zinco que vinha
na minha direcção e em que o local diz a gozo que depois fica vermelho.
Fingi que não ouvi. Até porque afinal ele nem
sabe que fica é negro. E que, se quisermos, somos todos da mesma cor.
Vende-se tudo desde materiais de construção, roupas,
bebidas e comidas. As carnes e os peixes carregados de moscas, colocados tudo em
cima de bancadas de madeira. Os vendedores já têm os sacos vazios prontos para
a venda à nossa passagem. Apontam para nós a oferecerem-nos os seus produtos. É
só escolhermos.
Até a roupa de bebé está devidamente pendurada
para vermos melhor os tamanhos do que procuramos.
Alguidares, materiais de construção, utilidades
para o lar.
Frutas várias colocadas por tipo bananas,
abacates, limões, ananases tudo devidamente equilibrado num efeito bonito num
alguidar de cor diferente. Por exemplo a cor das laranjas a contrastar com o
azul claro do alguidar.
Não mostrei interesse por nada. Na verdade
estava interessada em tudo. Mas assim despistei os insistentes vendedores que
tentam convencer que vendem o melhor produto ao melhor preço. Puros vendedores.
A determinada altura ouço apenas a São
murmurar à Luísa e de repente ambas formam-se numa barreira protectora. Recordo
a mão da São que me empurra para a frente dela e para as costas da Luísa. Uma à
minha frente e outra atrás de mim. Não me apercebi do perigo mas percebi o
carinho do momento em que me protegem literalmente apercebidas dos potenciais
problemas. Não tentei averiguar mais nada nem no momento nem depois disso. Fica
apenas a confirmação de que há gente boa, em todo o lugar onde há gente má.
A luz do dia, os cheiros, os sons das buzinas
misturadas com os risos das crianças, é o que prefiro guardar em mim, junto com
a descontraída ingenuidade minha e delas.
E não chegaste a conhecer o mercado do Roque Santeiro, agora desactivado, que foi o maior mercado a céu aberto de África.
ResponderEliminar"Se não tem no Roque, é porque ainda não foi inventado." dizia Pepetela